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Piauí é celeiro de mão de obra escrava por vulnerabilidade socioeconômica

As atividades em que mais se aliciam trabalhadores estão relacionadas à extração da palha de carnaúba, carvoaria, agronegócio da soja e construção civil

08/09/2017 08:38

O trabalho na roça era pesado e o salário mal dava para garantir as necessidades bá- sicas. Aos 18 anos, Elenilson era um dos muitos jovens do município de Monsenhor Gil que, por falta de escolaridade e oportunidade, não conseguira se fixar em um trabalho formal. Ao surgir um convite para trabalhar em outro estado com carteira assinada, em virtude das suas necessidades, ele não titubeou. Quando aceitou sair da sua comunidade em buscar de melhores condições de trabalho, o jovem entrou em um ciclo que se repete com uma frequência entristecedora no Estado: a exportação de mão de obra escrava. 

Aos 18 anos, Elenilson foi trabalhar no Pará em busca de melhores condições de vida, mas foi enganado (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)

De acordo com o procurador do Ministério do Trabalho no Estado, Edno Moura, a situação persiste pelos fatores de vulnerabilidade econômica, social e educacional dos trabalhadores que são explorados. “Eles desempenham uma atividade que não exige muita qualificação, a questão da dificuldade de obter uma ocupação do mercado faz com que as pessoas se submetam a esse tipo de situação, mesmo em condições degradantes, jornadas exaustivas ou se submetendo a uma servidão por dívida, é uma alternativa que tem para poder se alimentar. No Piauí, o principal fator ainda é o econômico, mas é claro que têm os ciclos de vulnerabilidade, como o educacional”, destaca. 

Ao tempo que jovens deixam o Estado em um ciclo migratório em busca de trabalho, outros tantos também permanecem em seus locais de origem atrelados a atividades degradantes. No Piauí, as atividades em que mais se aliciam trabalhadores estão relacionadas à extração da palha de carnaúba, carvoaria, agronegócio da soja e construção civil. 

Segundo Joana Lúcia Feitosa, coordenadora do eixo migração e trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, o Estado apresenta municípios de Norte a Sul em que se constata a vulnerabilidade para a migração e manutenção de atividades de trabalho escravo. 

“Em Barras, migram muitos trabalhadores, em União, São Braz, São Raimundo Nonato, Miguel Alves, Porto, Valença, Demerval Lobão e muitos outros. Quem se mantém no Estado em trabalhos degradantes em sua maioria está ligado a questão da palha da carnaúba. O contexto é esse: além de exportar, nós também temos casos de trabalho escravo concretos”, ressalta Joana. 

Combate à escravidão sob risco de retrocessos 

Os últimos três anos têm suscitado muitas dúvidas quanto ao futuro do combate ao trabalho escravo no Brasil. A suspensão da Lista Suja dos empregadores flagrados por trabalho escravo, a pretensão da bancada do Congresso em excluir as expressões “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”; e contingenciamento imposto pelo Governo Federal para as ações do Ministério Público do Trabalho preocupam o enfrentamento a esse tipo de prática em todo o país. 

Em 2014, foi suspensa a publicação da Lista Suja dos empregadores flagrados por trabalho escravo, medida decretada liminarmente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, a pedido de grandes construtoras. Desde então, a Lista deixou de ser publicada pelo Ministério do Trabalho e só voltou a ser publicada em março deste ano, depois de quase três anos sem atualização e só após uma intensa disputa judicial com o Ministério Público do Trabalho (MPT). 

Edno Moura comenta a suspensão de divulgação da lista dos empregadores flagrados por trabalho escravo (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)

No contexto local, o Piauí se destaca negativamente tanto pela exploração de trabalhadores no seu território quanto pela exportação de trabalhadores em outro estado. Assim, a lista permitia avaliar de uma forma adequada como estava a exploração desse tipo de trabalho pontualmente. 

“Infelizmente, por alguns problemas jurídicos, o Supremo permitiu retirar essa lista e o Ministério do Trabalho acabou não mais divulgando. Hoje, não temos um parâmetro seguro de como estaria situado o Piauí no contexto nacional, mas pela experiência que temos, o Piauí se destaca de forma negativa e ocupa a 8ª ou 9ª posição no índice de exploração de pessoas. No fornecimento de mão de obra, a gente, infelizmente, tem ainda uma atuação mais destacada, que está entre a 4ª e 5ª posição, perdendo para alguns estados, como Maranhão e Bahia”, explica o procurador do MPT-PI, Edno Moura. 

E se a suspensão da lista impacta no enfrentamento às práticas de trabalho escravo, isso se agrava muito mais em um contexto em que os órgãos responsáveis pela fiscalização e repressão a condutas de prática degradantes têm seu orçamento contingenciado. 

No fim de março, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou um corte de R$ 42,1 bilhões nas despesas federais programadas para 2017. O contingenciamento atingiu em cheio as equipes de fiscalização do trabalho escravo. 

“Nossas ações acontecem com membros do Ministério Público do Trabalho, auditores do trabalho que, infelizmente, por conta de problemas orçamentários estão impedidos de viajar. A degradância dos ambientes de trabalho continua e persiste, estamos enfrentando uma dificuldade enorme, inclusive a título de legislação, porque existe um movimento no Congresso Nacional que quer excluir das hipóteses configuradoras de trabalho escravo essa degradância e a jornada exaustiva. São muitos obstáculos a enfrentar”, explica o procurador. 

Piauí em número de resgates 

Apesar das dificuldades que se tornam cada vez mais perceptíveis no que tange ao enfrentamento da prática do trabalho escravo, o Piauí registra avanços na área. As fiscalizações e repressões a este tipo de conduta já livraram mais de 300 trabalhadores de condições análogas à escrava. 

Em 2014, 159 trabalhadores foram resgatados da extração da palha de carnaúba; em 2015, foram 60 trabalhadores e, em 2016, foram 30 trabalhadores retirados de trabalhos escravos com a palha de carnaúba e outros 25 no setor de extração de madeira. Ações realizadas pelo Ministério Público do Trabalho e de seus parceiros. 

Segundo o Código Penal Brasileiro, é considerado trabalho escravo qualquer atividade cujas condições do trabalhador atentem contra a dignidade humana. De acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é crime submeter o trabalhador a condições degradantes, jornada exaustiva, servidão por dívida ou qualquer tipo de trabalho forçado. Entre 1996 e 2013, mais de 50 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram libertados no Brasil. 

No Piauí, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o perfil dos trabalhadores que são aliciados por essas atividades são homens, de 18 a 35 anos, com nenhum ou baixo nível de escolaridade. 

Falta de políticas públicas agrava situação de exploração

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma instituição ligada à Igreja Católica e atua em todo o território nacional como um serviço em prol da causa dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, atuando como um suporte para a sua organização. No Piauí, a entidade se divide entre os vários eixos de atuação, entre eles, o de lidar com o enfrentamento à migração e ao trabalho escravo. 

Joana Lúcia Feitosa é a coordenadora do eixo migração e trabalho escravo e, para ela, a principal causa da perpetuação do trabalho escravo é a falta de políticas públicas que intervenham no meio. 

“O mais recente ataque do governo foi nos cortes de recursos para a fiscalização, o que é uma afronta aos direitos humanos, porque a impunidade reina sem fiscalização. Na esfera penal, os crimes de trabalho escravo geralmente não são condenados, porque envolvem grandes empresários, grandes latifundiários, que não conseguem ser punidos concretamente. Parece que as autoridades não têm interesse de resolver esse problema. Se não pune quem escraviza, não fiscaliza e se não tem políticas públicas, como havemos de reverter isso?”, questiona. 

Falar em políticas públicas, nesse contexto, é debater a necessidade de amparar o trabalhador do campo, de viabilizar acesso aos serviços de saúde e educação, promover a dignidade humana para que as pessoas não sejam compelidas a sair da sua terra ou submeter-se a trabalhos degradantes em outros estados, por pura e simples necessidade de sobrevivência. 

“Ninguém sai da sua terra natal, deixa sua família, sua comunidade, porque quer. Sai porque não tem opção. Têm algumas migrações que as pessoas saem para estudar e é claro que necessariamente nem todo migrante é escravizado, mas no nosso Estado muitos dos que migram passam pelo trabalho escravo”, destaca. 

Enfrentamento 

Para enfrentar esta realidade, a CPT faz um trabalho de sensibilização, informação, denúncia e reivindicação de políticas públicas para esses trabalhadores, entendendo que o combate ao trabalho escravo exige ações que, no seu conjunto, dependem do real empenho do Estado, nas diversas vertentes das políticas públicas. 

Na prevenção, contra a discriminação histórica dos trabalhadores rurais pobres, maior público alvo do trabalho escravo no Brasil; na repressão, que implicaria na suficiente disponibilidade de equipes de fiscalização; na punição, para não dar margem à repetição deste tipo de prática e na reparação e acesso a condições decentes de trabalho. 

“Denunciar essa realidade é o nosso papel como indivíduo, como ser humano, o trabalho escravo é uma das maiores violações que temos hoje. Por isso, na CTP também trabalhamos a sensibilização da sociedade como um todo com um Fórum para debater o tema atrelado a outras instituições”, finaliza. 

“A primeira coisa que a gente perde é o nome”, lembra agricultor escravizado no Pará 

Elenilson da Conceição, hoje, tem 32 anos, é casado e pai de um serelepe garoto. Leva a vida como agricultor no Assentamento Nova Conquista, zona rural do município de Monsenhor Gil, onde tira do trabalho árduo e diário o sustento da sua família. A vida aparentemente pacata, no entanto, guarda lembranças de um período que ele se recorda com exatidão, mas que preferia esquecer. Aos 18 anos, o trabalhador serviu como mão de obra escrava em uma fazenda no interior do Estado do Pará, quando saiu do Piauí acreditando que teria uma melhor oportunidade de trabalho. 

Elenilson hoje vive no Assentamento Nova Conquista junto com outros trabalhadores que foram escravizados (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)

“Chegou um homem dizendo que tinha trabalho lá na terra, que a gente ia ter a carteira assinada e ia ganhar por produção”, destaca o convite que, à época, fez com que cerca de 30 homens saíssem das suas localidades para desbravar a pretensa oportunidade de trabalho no Pará. 

O que seria um novo horizonte, na verdade, se tornou um tormento. Ao embarcar para o Norte do país, os trabalhadores foram submetidos a trabalhos degradantes e sem remuneração justa durante seis meses. 

“Depois de dias dentro do ônibus, nós descemos em um lugar lá que não tinha nada e fomos colocados em cima de um caminhão de carregar gado. A primeira coisa que a gente perde é o nome, o que era Elenilson passou a ser só ‘Piauí’. Depois, andamos a pé até uma área dentro do mato. Lá, só jogaram uma lona e mandaram a gente fazer nosso barraco”, explica. 

Sem condições dignas de descanso, alimentação ou saúde, Elenilson e cerca de outros 200 trabalhadores de outros estados, não só do Piauí, eram submetidos a jornadas extensas de trabalho para descampar áreas de mato virgem na comunidade onde foram fixados. 

“Tinha um lugar lá que a gente tinha que comprar tudo para comer e para trabalhar. O que acontecia era que a gente trabalhava e mal dava para pagar o que tinha que consumir”, afirma. 

Enquadrado na forma de trabalho de servidão por dívida, quando o trabalhador executa suas atividades, mas ica atrelado às condições de débito com o patrão, o jovem viu que o trabalho estava muito longe da ideia que foi apresentada inicialmente. 

Para piorar, não havia contato com a família e, a todo instante, os trabalhadores eram ameaçados, caso tentassem fugir ou não cumprir as metas de trabalho. 

“Nova Conquista” e a consolidação do sonho de liberdade 

A história de Elenilson também é recontada por Francisco Rodrigues, que viveu a mesma experiência. Após vivenciar a realidade de ter seus direitos e possibilidades cerceados, Francisco é direto quando afirma: “hoje, a liberdade para trabalhar e viver da forma como eu quero é minha maior felicidade”. 

O trabalhador, atualmente, se dedica às atividades de agricultura e corte de cabelo para adquirir a renda da família. As lembranças do período de exploração, apesar de latentes, são retomadas como um passado que não se repetirá mais. 

“A gente acordava duas horas da manhã para fazer a comida e ir cortar mato às 4h. Quando chovia, era uma noite acordado segurando a lona para a água não cair em cima da gente. Mas a gente só se deu conta de que estava trabalhando vendido quando deu três meses e fomos ‘bater a conta’ e o jagunço disse que ainda estávamos era devendo o fazendeiro. Eles deram R$ 60 para a gente sair do Piauí, nessa época, a gente foi vendido por esse preço”, relembra. 

A volta para a casa, família e para a possibilidade de ter uma vida digna foi abraçada como uma nova chance. Com o assentamento Nova Conquista, Francisco conseguiu seu local para morar e trabalhar, além de aprender uma nova profissão.

 Francisco agora se dedica às atividades de agricultura e corte de cabelo para adquirir renda (Foto: Jaílson Soares/ O Dia)

“A gente nunca imagina que vai viver esse tipo de coisa. Infelizmente, ainda continua acontecendo porque quem não tem oportunidade de trabalhar tem cai nessas histórias. Mas eu sei que hoje minha vida é diferente, nunca mais será como foi”, finaliza. 

Nova Conquista 

Constituída a partir de 2004, a Associação do Assentamento Nova Conquista reúne 39 famílias de trabalhadores migrantes do município de Monsenhor Gil (PI), explorados em situação de trabalho escravo no roço de juquira e no desmatamento, em empreitas realizadas em fazendas de gado no interior do Pará. 

A cada ano, é costumeira a migração de milhares de trabalhadores piauienses que saem em busca de “melhoras” em outros estados do país. Na época, os de Monsenhor Gil não fugiram desta regra imposta pela falta de opções locais de trabalho e de renda. 

O Assentamento Nova Conquista é o primeiro Assentamento criado no Brasil por e para trabalhadores que passaram por situação de trabalho análoga à de escravo.

Por: Glenda Uchôa
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