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Colunista

João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 01/05/2024

O cerco irrefletido da proibição de celular na escola

Jovens padecem de projeto educativo consistente e sistemático das famílias e das escolas para uso adequado, saudável e responsável desses aparelhos

Muitas escolas decidiram, neste primeiro semestre, proibir o porte do celular em sala, do convívio escolar no ensino fundamental, nas saídas pedagógicas e nos estudos do meio.  

celular

O que se temia lá no Vale do Silício vem se concretizando de fato, por conta de um estímulo demasiado e pouco reflexivo dos celulares
(Foto: Schutterstock)

Quando anunciadas as medidas, nas primeiras reuniões entre família e escola, houve aplausos efusivos dos pais, talvez porque eles mesmos não conseguissem mais impor limites e monitoria mínimos e razoáveis para o porte e o uso dos aparelhos pelas crianças e pelos adolescentes. No entanto, de forma contraditória, ficaram incomodados quando o veto se estendeu para os estudos do meio, sobretudo porque a regra tirou-lhes o conforto e o controle (precário?) que poderiam ter dos filhos em viagem de três a cinco dias. Já houve relatos de que alguns pais, em conluio com os filhos, burlaram a regra e permitiram que os smartphones fossem levados clandestinamente na bagagem. 

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As justificativas dos colégios para a interdição dos aparelhos e similares se basearam em constatações óbvias: perda de concentração dos alunos, prejuízos cognitivos na aprendizagem, indisciplina, bullying digital, ansiedade dos jovens, maus resultados no Pisa, perda de habilidades motoras e por aí vai. A medida chegou tarde às escolas brasileiras e, em muitas instituições, de forma atabalhoada e improvisada e revelou mais desespero da comunidade educativa (pais e escolas) do que um debruçar consistente, lúcido e estudado da situação que há anos já se anunciava perigosa e até catastrófica.  

Executivos do Vale do Silício e das big techs há mais de 10 anos já limitavam o uso do celular e de tablets pelos filhos e os matriculavam em escolas primordialmente analógicas, tão criticadas pelos entusiastas da modernidade, com quadro negro, giz, cadernos, livros, caneta, lápis, borracha, réguas, paredes forradas de produção acadêmicas de crianças. Nada produzido pelas impressoras.  

Aparelho celular na escola

No coração e no epicentro da economia digital, os aparelhos digitais já eram proibidos nas escolas sob a justificativa de que educação tem de ser um processo criativo e crítico; sobretudo no ensino fundamental. Eles compreendiam que o que desencadeia o aprendizado é a emoção, a criatividade e os afetos, e isso dependia exclusivamente da interlocução humana, porque somos nós, e não as máquinas, que produzimos esses processos. Entendiam também que crianças e adolescentes postos horas diante de uma tela perderiam habilidades cognitivas, motoras e relacionais fundamentais para o convívio social e para o desenvolvimento humano. Esses executivos temiam pelo futuro das crianças cujos pais e colégios estimulavam desde cedo o uso desses aparelhos em casa e nas escolas. Acreditavam que em 15 anos, quando os jovens se tornarem adultos, terão sérios problemas cognitivos, emocionas e relacionais.   

Hoje, os recrutadores de RH vêm sofrendo para encontrar na geração Z, vítima desse estímulo, profissionais capacitados cognitiva e emocionalmente. Há relatos de que alguns jovens não conseguem se concentrar com qualidade no trabalho e muitos postulantes a um emprego levaram os pais para entrevistas. O que se temia lá no Vale do Silício vem se concretizando de fato, por conta de um estímulo demasiado e pouco reflexivo dos celulares. 

Esse é o primeiro reflexo de uma geração que, no Brasil, foi fartamente incitada a usar smartphones em casa e na escola. A geração atual, por sua vez, não só usou de forma potencializada celulares e tablets em casa e na escola, como foi amplamente estimulada pelas escolas a fazê-lo, na contramão do que se fazia no Vale do Silício e em muitos países da Europa que obtinham resultados mais significativos em exames de escala mundial. 

A geração atual que usou incessantemente celular durante a pandemia, tonou-se refém das redes sociais, de sites problemáticos como o Discord, de influenciadores, de deep web, de fake news, de correntes perigosas no WhatsApp. Além disso, ela padece do vício de estar conectada à internet o tempo todo e da falta de um projeto educativo consistente e sistemático das famílias e das escolas para uso adequado, saudável e responsável desses aparelhos. 

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Não podemos dizer que os adultos que educaram e educam essas duas gerações foram surpreendidos com os resultados preocupantes que o uso intenso dos celulares provocou. Se há mais de 10 anos havia pelo mundo exemplos de uso responsável, limitado e restrito dos telemóveis e dos tablets, por aqui havia um encantamento obtuso e deslumbrado por eles. Com as metodologias ativas, com as estações por rotação, com as salas de startups, etc., defendiam-se o uso para valer pelas crianças nas escolas. E, em casa, por comodidade e por falta de tempo dos pais na interlocução com os filhos, o uso foi liberado de forma pouco responsável. Deu-se o celular sem um pingo de formação para o uso. 

Quando o desespero bateu à porta, escolas o proibiram e pais aplaudiram a decisão, embora em casa a dependência ainda corra frouxa. O celular, nos colégios, foi jogado para debaixo do tapete e lá encontrou alguns descasos educacionais jogados há mais de 10 anos: desenvolvimento de habilidades de leitura sólida para identificar fake news com apoio de todos os componentes  disponíveis nas grades curriculares, cursos de cidadania analógica e digital, propostas de atividades em que os jovens aprendam a falar e a dialogar  com polidez e tolerância, projetos de ensinos que ajudem os jovens a dar conta de si mesmos, das regras de convívio, das dores e angústias, das relações interpessoais e de sua formação sociopolítica.  

E assim, muitas escolas acreditaram que banimento do celular em sala de aula é a varinha de condão que trará para as salas de aula alunos interessados em aulas mecânicas e desinteressantes, atentos, críticos, emocionados, altruístas, bons de cálculos, solucionadores de  problemas, levantadores de hipóteses,  criativos e  capazes de — quando abrirem a tela dos seus aparelhos — discernir com clareza as fontes razoáveis de pesquisa e a refutar todas as mentiras e  as picaretagens que existem nas redes sociais e na vida.  

Talvez seja necessário olhar com mais cuidado o que está embaixo desse tapete.  

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